Há frases insólitas, que não esperamos ouvir, e é com esses imprevistos que se tece uma boa parte do prazer da viagem, das pequenas e grandes descobertas. "Eu é que sou o homem-bala", diz-nos Ruben, 27 anos, como se a nossa conversa nocturna, no amplo terreiro do Rossio, em Évora, não pudesse continuar sem que essa informação fosse partilhada. "E também faço o número do hipopótamo." O hipopótamo, que teríamos oportunidade de cumprimentar "é francês", chama-se Tutor e pesa duas toneladas.
"Eu é que sou o homem bala". Mais do que insólita, é uma frase que não temos muitas probabilidades de ouvir na nossa vida, já que, explica-nos Ruben, hoje só há quatro pessoas no mundo inteiro a fazerem este clássico número circense, e ele foi o primeiro (e único) português a apostar nesse voo alucinante - disparado a 200 quilómetros por hora, como se pode ler numa das carrinhas. Inspirado por um norte-americano que trabalhava neste mesmo Circo Mundial há uns anos, Ruben, que era trapezista, começou a preparar em 2007, com um amigo que tem uma empresa de material para bombeiros, um canhão de compressão hidráulica ao seu tamanho. Um canhão personalizado, pode dizer-se. O único truque, diz, é não perder a noção do espaço enquanto sobe, veloz, 15 metros no ar, disparado de uma ponta à outra da tenda do circo, 30 metros. Mas há um ano, no Redondo, o voo não correu bem, Ruben feriu-se num pé quando aterrou na rede e teve que sair de ambulância. Mesmo em recuperação, e contra todos os conselhos médicos, não desistiu do número do homem bala., uma das mais fortes apostas atuais do Circo Mundial, fundado em 1994 pelo seu pai, Rui Mariani.
Ontem, quarta-feira, 20, não foi um bom dia para o circo. À tarde, quando a caravana de 22 camiões coloridos e mais veículos seguia de Borba para Évora, a estrada molhada fez despistar, e capotar, uma carrinha com atrelado. Ninguém se magoou, mas a Ford Transit ficou irrecuperável. Quase à meia-noite não é isso que tira o sorriso franco a Rui Mariani, 56 anos, orgulhoso a apresentar o grande circo. À nossa volta, ergue-se a tenda, em gestos repetidos várias vezes por semana. Com a crise, explica-nos Rui, é cada vez mais frequente fazerem sessões únicas, de um só dia, durante a semana, como tinha acontecido na véspera em Borba. Fala-nos da responsabilidade - são 40 pessoas, oito famílias com 14 crianças, em permanência no Circo Mundial -, e também de como se sente privilegiado por manter a tradição familiar (com as origens italianas denunciadas pelo apelido). "Sim, é um privilégio", diz, "trabalho aqui com os meus três filhos, a minha mulher, estamos sempre juntos; isso não é muito comum nas famílias hoje, pois não?". E a ideia de "família", ali, ultrapassa a união dos graus de parentesco. "Está a ver aquele rapaz?". É um homem pequeno, de bigode, com uma coreografia de movimentos circulares perfeitos a martelar, ritmadamente, um gigantesco prego no chão de terra do Rossio. "Já anda comigo, a trabalhar, há 32 anos!". Rui não resiste a desfiar algumas memórias, do tempo em que, com os dois irmãos, era trapezista - "os primeiros trapezistas voadores portugueses!". Percorreu muitos países africanos, sempre com o circo atrás. Em 1974, soube do 25 de abril algures em Angola, poucos dias depois seguiu para Moçambique... Este 25 de abril, de 2011, vai ser o da última apresentação aqui em Évora. Depois, a viagem continua, o Circo não pára.
Olho em redor. O cenário é quase irreal, para não dizer surreal, e muito cinematográfico. O espaço é amplo, a luz não é muita, os charcos de água no chão refletem as cores dos camiões, dos reboques, dos letreiros... Silêncio. Ao pé de mim, um enorme atrelado move-se sincopadamente sobre os pneus - lá dentro estão sete tigres, que caminham calmamente, possantes. Mais à frente, duas lamas curiosas, cavalos, póneis, um contentor frigorífico cheio de carne fresca para os animais, um camião que anuncia o "transporte de serpentes e crocodilos", o pachorrento Tutor... E roulotes gigantescas, caravanas que são casas, com todas as comodidades. Penso na nossa Caravana VISÃO, claro. De repente, já não me parece tão grande e difícil de manobrar em estradas e ruas apertadas. Esperamos ir buscá-la, em breve, à oficina. Depois? Depois, a viagem continua, a Caravana VISÃO não pára.